domingo, 12 de março de 2017

No Coração da Floresta

O fato se tornará uma história e a história se tornará uma lenda. Até que um dia a lenda se tornará apenas uma bela fábula, que nem de longe contará a verdade sobre o fato ocorrido. E no aconchego de seus lares, ao pé de uma lareira quente ou sentado em uma cadeira na varanda, contará esta história aos seus filhos, pensando que nunca aconteceu.

Foi por volta de mil e quinhentos, quando os portugueses firmaram seus pés sobre a Ilha de Vera Cruz, mais conhecida como Brasil, que o primeiro clã de bruxas vindo da Europa, também conheceram estas terras. Os livros contam sobre os padres que vieram nas embarcações para abençoar a viagem e as terras desconhecidas. Entretanto se esquecem de mencionar as famosas “irmãs de Sangue”. Um grupo de mulheres pagãs que habitavam as florestas europeias, conhecidas pelo seu poder e longevidade.


Conta-se também que durante o início dos vilarejos nestas terras, Portugal enviou homens que haviam sido presos por cometerem crimes horrendos. Entre eles estava Sebastião Leite, um homem sem nenhum escrúpulo e moral, que ao desembarcar no Brasil sequestrou uma índia chamada Jaciara. Jaciara, filha de um grande pajé e possuidora de sangue guerreiro, não se deixou intimidar pelo seu algoz. Mas após anos de maus tratos e surras, envergou diante de tanta crueldade e passou a obedecer cegamente o monstro. Esta união gerou dois frutos, João e Maria. Duas crianças que mesmo vivendo em um lar desfeito e cruel, conseguiam manter a esperança e bondade em seus corações.

Mas após alguns anos de colheita ruim, Sebastião Leite passou a se embrenhar em meio à mata, com o objetivo de caçar algo para comer. Numa dessas caçadas deu de encontro com o inimaginável, um lindo casebre em meio a mata, de onde flutuava o cheiro de torta. Ao chegar perto não pôde acreditar: dentro da pequena casa havia uma mesa com toda variedade de doces e pães que poderia querer. Uma linda moça apareceu na janela. Com um corpo escultural e vestido transparente esvoaçante, o chamou para entrar.

Sebastião logo pensou que iria saciar sua fome de pão e de quebra deflorar a pobre moça. Mas assim que sentou na cadeira ficou paralisado. Não conseguia mover sequer um dedo da mão. Olhava espantado para a jovem, que se aproximava enquanto seu corpo se enrugava lentamente. A transformação revelou uma velha senhora de olhar vil. Quando chegou bem perto, a mulher pegou uma faca e arrancou um naco da bochecha de Sebastião. Enquanto mastigava com um sinistro prazer ela disse de boca cheia:

— O gosto até que não está ruim, talvez um pouco de manjerona e tomilho melhorem a carne.

O homem desesperado urrava de dor por ter sua bochecha arrancada e chorava de desespero, constatando a morte cruel que iria sofrer.

— Mas a sua carne é um pouco dura, por isso prefiro comer crianças.  Elas possuem uma carne mais tenra e suculenta.

O monstro chamado de pai por João e Maria, pôs se a falar enquanto chorava.

— Minha senhora, se me deixar ir embora prometo lhe trazer duas crianças deliciosas para seu deleite. O menino é bem magrinho, mas a garota tem bochechas maiores e mais jovens que as minhas.

A velha bruxa sorriu e disse:

Temos um pacto senhor, é melhor não quebrá-lo ou serei forçada a lhe impor uma morte mais dolorosa do que ser espetado por agulhas quentes até perder as forças.

O covarde saiu correndo pela floresta chorando com a mão na bochecha, até chegar em casa. Mas em casa se recompôs e fingiu ser um valente caçador ferido em batalha. E pediu para que as duas crianças o acompanhassem até o coração da floresta, aonde deixara a caça esquartejada. A mãe das crianças questionou, dizendo que era um fardo muito grande para as crianças carregarem. Mas foi presenteada com um tapa no rosto.

Cabisbaixas e sem esperanças, as crianças adentraram a floresta na companhia do remendo de pai que elas possuíam. Andaram até a mata ficar frondosa e escura. Foi então que avistaram o pequeno casebre com cheiro de tortas. O rato em pele de homem então disse:

— Estão vendo a cabana, crianças? Podem entrar, é de uma amiga do papai. Daqui a pouco volto, com os pedaços de caça para carregarmos.

Sem questionar, João e Maria entraram na pequenina casa, e se depararam com uma mesa farta de doces, tortas, bolos e pães. Ao lado da mesa, uma jovem moça lhes disse:

— Bem vindas, crianças! Podem comer o que quiserem!

Mas as horas na cabana esperando o pai viraram dias e os dias viraram meses. As crianças nada percebiam, enfeitiçadas pelo sabor da comida e o conforto da casa. Elas já não lembravam mais há quanto tempo estavam ali ou mesmo sentiam vontade de ir embora. Até que um dia, Maria ouviu um grito pela manhã. E se deparou com uma velha segurando um cutelo ensanguentado.  Na mesa estavam pedaços de seu irmão João. Ela sorriu com a gengiva e dentes rubros de sangue enquanto jogava uma perna no caldeirão.

Maria desmaiou após gritar de horror e acordou horas depois amarrada na cama. Enquanto a jovem mulher que os recebera falava-lhe com um tom doce:

— Bom dia Maria, não quis lhe perturbar com minha forma mortal. Mas sou uma bruxa de sangue. E para me manter jovem devo comer carne humana. Você me compreende?

— É difícil para mim, sair e caçar jovens para manter esta bela forma. Isso gasta energia e atrai muita atenção. Agora vou fazer uma proposta.

Maria, amarrada e amordaçada, com seus grandes olhos cheio de lágrimas, apenas balançou a cabeça dizendo sim, confirmando que ouvia a proposta da bruxa.

— Muito bem menina. Você é jovem e não faltarão rapazes dispostos a entrar na mata com você em troca de alguns favores. Basta trazer os rapazes aqui antes ou depois da sua diversão com eles. E eu prometo que além de não devorar sua carne lhe ensinarei o segredo da vida eterna.

Chorando, Maria consentiu e ano após ano, diversos meninos sumiram do vilarejo. E as poucas testemunhas que os viram pela última vez, sempre diziam que eles foram rumo a floresta de mãos dadas com uma linda garotinha de bochechas fartas, de cabelos pretos e olhos verdes.

Como eu sei disso? Simples, me chamo Maria Leite, a atual rainha das Bruxas de Sangue.

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