segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Noite de Saci

Nos idos de 1998 tive o prazer de trabalhar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, especificamente na recuperação de livros e documentos históricos. Muitos destes documentos estão em português arcaico misturado com tupi e eram bem difíceis de ler.  Mas durante uma restauração uma palavra em especial me chamou atenção, Matimpererê.

Foi inevitável não pensar no famoso personagem do nosso folclore Saci – Pererê. Decidi então dar uma olhada melhor ao documento, e vi que se travava de uma carta escrita por um bandeirante chamado António Costa Valente ao seu contratante Mario Garcia Proença. Resolvi transcrever a carta para o português mais atual e traduzir alguns termos em tupi. O resultado vocês podem ler abaixo:


15/08/1629

Estimado Senhor Mario Garcia Proença

Envio-lhe está mensagem pelas mãos do meu mais fiel ajudante. Trago nestas linhas a explicação de nossa frustração na captura do suposto negro aleijado que foi visto matando o gado de sua propriedade. Reuni um grupo de vinte homens e cinco índios para a captura do sujeito, contamos também com um clérigo para nos abençoar durante a empreitada.

Infelizmente não logramos êxito na captura, porém um acordo foi firmado junto à tribo, se assim posso dizer, dos Matimpererê. Volto em breve na companhia do clérigo e um índio. O resto de meus homens foram abatidos em uma emboscada, na frente com as notícias está meu fiel ajudante que lhe entregou a carta.

Após dez dias passados mata adentro, ao logo da noite ouvimos assovios altos ao nosso redor dentro da mata. Um de meus homens, agoniado deu um tiro de mosquete como alerta. Para minha surpresa em frente à nossa fogueira uma figura taciturna apareceu, como um demônio enviado do próprio inferno.

O demônio media cerca de dois metros de altura, sua coloração era de um negro angola, sua musculatura era forte. O cabelo era de um tom avermelhado amarrado em uma espécie de coque, que lembrava bem um barrete ou píleo usado pelos portugueses. Curiosamente a criatura possui somente uma perna. Mas não parecia que fosse amputado da outra, a impressão que tive era que sua anatomia era assim. Possuía um pé bem largo e grande, ao passo que guando se locomoveu dando um pulo à frente da fogueira, seu pé ao bater no chão levantou uma poeira que parecia um pé de vento.

Não usava vestes para cobrir suas vergonhas, empunhava uma lança com cabo de madeira e ponta de osso. Na boca trazia uma espécie de piteira ou cachimbo – que reconheci sendo a fonte dos assovios. Ele se pronunciou através de uma linguagem que não entendi. Um de meus índios, o único que está vivo para dar fé a historia, sabia pronunciar a língua da criatura.

O índio me alertou que a criatura era o líder da tribo dos Matimpererê, e que exigia que saíssemos de seu território. Indaguei ao índio e pedi que explicasse à criatura, que estávamos caçando um escravo arruaceiro que está matando os bois da propriedade do Senhor Mario Proença. A aberração lançou um assovio furioso com a piteira e logo estávamos cercados por dezenas delas. Não houve tempo para reação, a nossa bandeira foi dizimada com fúria e crueldade.

A agilidade e força deles durante a luta era espantosa, se movimentavam como os negros quilombolas lutando capoeira. Não havia como fazer frente a eles, alguns usavam lanças outros carregavam uma espécie de Alfanje. Achei que nosso fim estava certo.

Em meio ao sangue e gritaria mais uma vez um assovio foi dado, só havia restado o índio tradutor (que estava bem machucado), meu ajudante e o clérigo que se esconderam dentro de uma caixa de suprimentos. O líder veio até a mim e disse em sua língua algo que me foi traduzido pelo índio como:
“Avise ao seu Líder que a morte do boi foi meu primeiro aviso e ele continua invadindo a terra dos Matinpererê. Vocês são meu segundo aviso, para que fique longe de nossas terras. Da próxima eu não vou avisar.”

A criatura assoviou mais uma vez a sua piteira e sumiu mata a dentro junto de seus iguais. Assim posso dizer que ficou firmado um acordo, de que não voltaremos as suas terras. Agora Senhor Mario Garcia Proença, está em suas mãos. Eu estou satisfeito pela primeira parte do pagamento e digo que pode ficar com o resto do ouro, pois estou voltando a Vila de São Vicente. 

Faço destas palavras verdade.


António Costa Valente


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