Nos idos de 1998 tive o prazer de
trabalhar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, especificamente na
recuperação de livros e documentos históricos. Muitos destes documentos estão
em português arcaico misturado com tupi e eram bem difíceis de ler. Mas durante uma restauração uma palavra em
especial me chamou atenção, Matimpererê.
Foi inevitável não pensar no
famoso personagem do nosso folclore Saci – Pererê. Decidi então dar uma olhada
melhor ao documento, e vi que se travava de uma carta escrita por um bandeirante
chamado António Costa Valente ao seu contratante Mario Garcia Proença. Resolvi
transcrever a carta para o português mais atual e traduzir alguns termos em
tupi. O resultado vocês podem ler abaixo:
15/08/1629
Estimado Senhor Mario Garcia
Proença
Envio-lhe está mensagem pelas
mãos do meu mais fiel ajudante. Trago nestas linhas a explicação de nossa
frustração na captura do suposto negro aleijado que foi visto matando o gado de
sua propriedade. Reuni um grupo de vinte homens e cinco índios para a captura
do sujeito, contamos também com um clérigo para nos abençoar durante a
empreitada.
Infelizmente não logramos êxito
na captura, porém um acordo foi firmado junto à tribo, se assim posso dizer,
dos Matimpererê. Volto em breve na companhia do clérigo e um índio. O resto de
meus homens foram abatidos em uma emboscada, na frente com as notícias está meu
fiel ajudante que lhe entregou a carta.
Após dez dias passados mata
adentro, ao logo da noite ouvimos assovios altos ao nosso redor dentro da mata.
Um de meus homens, agoniado deu um tiro de mosquete como alerta. Para minha
surpresa em frente à nossa fogueira uma figura taciturna apareceu, como um
demônio enviado do próprio inferno.
O demônio media cerca de dois metros
de altura, sua coloração era de um negro angola, sua musculatura era forte. O
cabelo era de um tom avermelhado amarrado em uma espécie de coque, que lembrava
bem um barrete ou píleo usado pelos portugueses. Curiosamente a criatura possui
somente uma perna. Mas não parecia que fosse amputado da outra, a impressão que
tive era que sua anatomia era assim. Possuía um pé bem largo e grande, ao passo
que guando se locomoveu dando um pulo à frente da fogueira, seu pé ao bater no
chão levantou uma poeira que parecia um pé de vento.
Não usava vestes para cobrir suas
vergonhas, empunhava uma lança com cabo de madeira e ponta de osso. Na boca
trazia uma espécie de piteira ou cachimbo – que reconheci sendo a fonte dos
assovios. Ele se pronunciou através de uma linguagem que não entendi. Um de
meus índios, o único que está vivo para dar fé a historia, sabia pronunciar a
língua da criatura.
O índio me alertou que a criatura
era o líder da tribo dos Matimpererê, e que exigia que saíssemos de seu
território. Indaguei ao índio e pedi que explicasse à criatura, que estávamos
caçando um escravo arruaceiro que está matando os bois da propriedade do Senhor
Mario Proença. A aberração lançou um assovio furioso com a piteira e logo
estávamos cercados por dezenas delas. Não houve tempo para reação, a nossa
bandeira foi dizimada com fúria e crueldade.
A agilidade e força deles durante
a luta era espantosa, se movimentavam como os negros quilombolas lutando
capoeira. Não havia como fazer frente a eles, alguns usavam lanças outros
carregavam uma espécie de Alfanje. Achei que nosso fim estava certo.
Em meio ao sangue e gritaria mais
uma vez um assovio foi dado, só havia restado o índio tradutor (que estava bem
machucado), meu ajudante e o clérigo que se esconderam
dentro de uma caixa de suprimentos. O líder veio até a mim e disse em sua
língua algo que me foi traduzido pelo índio como:
“Avise ao seu Líder que a morte
do boi foi meu primeiro aviso e ele continua invadindo a terra dos Matinpererê.
Vocês são meu segundo aviso, para que fique longe de nossas terras. Da próxima
eu não vou avisar.”
A criatura assoviou mais uma vez
a sua piteira e sumiu mata a dentro junto de seus iguais. Assim posso dizer que
ficou firmado um acordo, de que não voltaremos as suas terras. Agora Senhor
Mario Garcia Proença, está em suas mãos. Eu estou satisfeito pela primeira
parte do pagamento e digo que pode ficar com o resto do ouro, pois estou
voltando a Vila de São Vicente.
Faço destas palavras verdade.
António Costa Valente
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