domingo, 9 de fevereiro de 2014

Medo

Aos olhos de um adulto uma criança leva a vida facilmente. Mas, não é exatamente assim. Ainda mais quando Deus resolve não te dar uma gota de coragem sequer. Foi assim que eu nasci, medroso. Para piorar, o mundo resolveu tornar a minha existência a mais difícil possível.

Eu me chamo Erick, tenho doze anos e estou ensopado pela chuva esperando o ônibus da escola. E, com certeza, hoje será mais um péssimo dia na minha vida.


É sempre assim, espero o ônibus todas as manhãs. E todos os dias sou recebido com um: "Senta lá, moleque! Seu molenga!" Minha vontade é de xingar esse motorista escroto. Entretanto, como todas as outras vezes eu respondo:

- Desculpe-me,  senhor Alberto? Não quis incomodar.

E a viagem segue com o senhor Alberto praguejando o universo ao seu redor, e em especial me fitando pelo retrovisor, com aquela cara feia. Eu desvio o olhar, tento observar o que acontece fora do ônibus, e assim vou durante todo o caminho, sem falar com ninguém, sem olhar para dentro do ônibus. Eventualmente alguém me joga uma bolinha de papel, mas não passa disso a minha convivência com as outras crianças.

Enfim a escola - o pior lugar do mundo. Juro que já gostei daqui, até eu passar a ser o alvo predileto dos garotos mais velhos. Um tapa nas costas aqui, um empurrão ali, um chute na bunda. Sem perceber sinto meu corpo se chocar violentamente contra a parede. Pronto. Já estou eu caído no chão outra vez. Não consigo conter, e começo a chorar. É ele, o Daniel - o pior algoz que um aluno desta escola pode ter. Enquanto tento me levantar, ele sai sorrindo e se gabando:

- Moleque bundão, vai chorar para a mamãe.

O sinal toca, é hora de entrar para a sala. Sento no fundo, ninguém nota a minha presença como sempre. O professor de matemática faz a chamada, mas, como eu disse, nem uma gota de coragem. Respondo baixo e o homem grita.

- Erick, você está surdo?

Eu ia responder "não",  ele que deve ter um chumaço de algodão no ouvido, porque eu havia respondido na primeira vez em que chamou meu nome. Mas fico apenas com um:

- Desculpe-me, professor? Não vai se repetir.

Rezo, com todas as minhas forças, para a aula acabar. O dia parece um pesadelo. Eu não reclamaria se fosse somente um dia assim. O chato é que a minha vida é assim. E, com certeza, antes de eu ir dormir ainda sentirei mais medo. Pois, hoje meu pai virá dormir em nossa casa.

Passo o fim da tarde no meu quarto estudando, até pegar no sono. Pelo menos os livros não me recriminam.

- Sua vaca! O que você fez o dia inteiro que a casa está suja? – escuto a voz do meu pai.

Nada me mete mais medo nessa Terra do que ele. Como sempre ele está brigando com minha mãe. Escuto barulhos de tapas e a minha mãe chorando. "Já chega! Isso vai acabar hoje." Vou até o armário do meu pai, sei que ele guarda a arma dentro de uma caixa de madeira. Enquanto a briga rola lá embaixo, eu pego a arma, e devagar eu deslizo pelas escadas.

Quando chego à cozinha, minha mãe está no chão. Mas eu não tenho coragem de fazer nada. Então, sem que me notem, eu subo novamente as escadas, ponho a arma no lugar  e,  da janela do meu quarto, vou olhar para a rua. É sempre falta aquela gotinha coragem.

Ah, já ia me esquecendo! Para completar minha lista de pavores, tenho um vizinho no prédio da frente que está sempre olhando para a minha janela.

Vou rapidinho para a cama com a imagem dele na mente. Ele é muito assustador. Não tem família e nunca é visitado por ninguém, e passa a noite toda na janela dele, acho que ele mete medo em todo mundo do bairro, não somente em mim. Vou deitar com a esperança de que o próximo dia seja diferente.

Escuto passos dentro do meu quarto, e acordo assustado.

Quando abro os olhos me deparo com um homem sentado em minha cama, ao meu lado. Um senhor de chapéu, terno e sobretudo preto. O susto é tão grande que não tenho reação, a não ser me mijar. Ele olha para mim e diz:

- Erick, eu vim te ajudar. Vou lhe conceder um dia sem esse medo que te apavora. Já que Deus não te presenteou com uma gota de coragem, eu vou te presentear retirando todo seu medo.

O homem sumiu em meio a escuridão após terminar sua frase.

Fui ao banheiro, tomei banho e voltei a dormir. A essa hora, morria de medo de acordar meu pai e ele me bater por eu ter feito xixi na cama. Mas, nada de mais aconteceu. Deitei, e a noite passou como num piscar de olhos. Acordei me sentindo o mesmo banana de sempre.

E como todos os dias lá estou eu esperando o ônibus.  E o senhor Alberto me saúda com um:

- Senta lá, moleque! Seu molenga!

Mas diferente de todos os dias eu não respondo. Sento no meu lugar, e fico olhando para a cara feia desse gordo pelo retrovisor. E me dei conta de que todos os dias respondi com educação por medo dele reclamar com a minha mãe. Ele segue me encarando pelo retrovisor, só que hoje eu não vou desviar o olhar, quem vai parar de me olhar será ele.

Levanto e vou vagarosamente até o banco do motorista, e sem que ele perceba eu tampo os olhos dele com a minha mão.

- Que isso, moleque! Está maluco?! – Grita o senhor Alberto dirigindo às cegas.

- Não estou maluco, seu gordo escroto. Hoje é você quem vai olhar para mim e sentir medo.

O ônibus sai batendo em vários carros parados, o caos é instaurado, todas as crianças começam a gritar dentro do ônibus. Menos eu. Pela primeira vez, enquanto todos choram e berram de medo, eu dou risada.

O senhor Alberto para o ônibus, eu libero os olhos dele e o mando abrir a porta.  Ele abre sem questionar, então sigo a pé até a escola.

Chego atrasado e cansado, mas com uma enorme sensação de liberdade. Resolvo beber um pouco de água no bebedouro, e uma voz no corredor grita meu nome:

- Erick, seu bundão. O que está fazendo no meu bebedouro?

- Esperando a sua mãe. – simplesmente falei, nem pensei no que aconteceria.

- Erick, você vai morrer!

Daniel vem correndo em minha direção, em poucos segundos ele provavelmente me dará um soco, só que hoje tudo será diferente para o Daniel. Enquanto ele corre eu pego a tesoura na mochila. Quando ele chega perto eu lambo  a lâmina. O sangue preenche a minha boca, e eu dou uma gargalhada avermelhada. Ele para atônito e fica sem saber o que fazer.

- Abre a calça! – eu mando.

Ele tenta dizer algo mas eu agarro o saco dele e aperto, ele começa a chorar. Eu abaixo a tesouro bem pertinho da calça dele, abro ela lentamente e fecho numa pancada só. Ele grita de susto e se mija todo. Daniel, o meu algoz, chorando e mijado. Eu cuspo o sangue na cara dele e o deixo caído no corredor. Por alguns segundos eu o compreendo. A sensação de ter o controle de tudo é ótima.

Entro na sala, e vou andando para o meu lugar. Minha língua arde um pouco, devido ao corte. Sento na cadeira e olho para o professor de matemática. Ele parou de escrever no quadro, cruzou os braços com o livro de exercícios em uma das mãos e ficou me encarando.

- Posso saber o porquê do atraso, Erick?

- Pode sim, senhor.

Levanto e ando até seu encontro. Ele fica espantado com a minha reação, tomo o livro da sua mão e jogo pela janela. Todos na sala ficam espantados e, como um coral, escuto vários burburinhos.

- Erick, você ficou maluco? Para a diretoria agora!

- Vou para minha casa e o senhor vá se foder!

Saí da sala escutando os últimos gritos ensandecidos do professor. Chego em casa e a primeira coisa que me vem à mente é pegar a arma do meu pai. Deito na minha cama com ela, e solenemente espero a noite chegar. Quando meu pai chega já é tarde. E eu já sei o que devo fazer.

Escuto a voz dele, já alterada, com a minha mãe e interrompo a conversa.

- Escuta aqui, seu porco, veja como você fala com a minha mãe. – Digo apontando o revólver para a cabeça dele.

Os dois gritam para eu abaixar a arma. Minha mãe começa chorar. Mas eu já sabia o que eu deveria fazer. Enquanto meu pai me olha sem saber o que fazer, abro o tambor do revólver e retiro as balas. Deixo uma bala no tambor e o giro. Agora é na sorte.

- Pai, já jogou roleta russa? – eu pergunto a ele enquanto aponto a arma para a minha própria cabeça.

- Para com isso, filho. Abaixe essa arma.

Click. Eu atiro contra a minha cabeça e a arma falha. Aponto então para a cabeça dele e disparo.
A arma masca de novo.

- Hoje é nosso dia de sorte, pai. Agora me escute, vou para a próxima rodada. As chances são menores.

- Por que isso, meu filho?

- Simples. Isso é ser valente, e não bater em uma mulher. Agora sai desta casa como o covarde que você é ou tente a sorte quando eu atirar de novo.

Ele não me questiona e sai correndo pela porta de casa. Minha mãe ajoelha e pede, por favor, para eu parar. Eu a ignoro e subo para o meu quarto. Como de costume vou olhar pela janela. Para eliminar o ultimo medo da minha lista, e para minha surpresa desta vez não é o vizinho quem está lá. O sujeito de chapéu, terno e sobretudo preto. Ele está pacificamente me olhando, e acena com a cabeça como quem diz sim.

Repasso todos os meus dias até este de hoje. E me pergunto por que deixei chegar a este ponto? Por que não fiz algo antes? Para mim não tem volta. Não quero acordar amanhã e voltar a sentir medo. Resta apenas uma coisa a fazer com o fim do dia chegando. Puxo o gatilho. 

BAMMMMMM.

Recebo o som sem medo pela primeira e última vez.


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