Como já relatei em outras páginas, sempre há algo de estranho a minha espera. Não só vivencio situações inusitadas, como também as escuto de outras pessoas. Há um bom tempo em uma tarde de verão, eu estava sentado em uma praça tomando sorvete. Observava despretensiosamente as crianças brincando, quando uma voz rouca clamou ao meu lado.
Era uma senhora, com os seus sessenta beirando setenta anos. Andava apoiada sobre uma bengala de madeira negra, com uma coruja de prata na empunhadura. Olhou-me de cima a baixo, por fim pediu para se sentar no banco ao meu lado. Obviamente que não neguei o pedido da senhora.
Notei que ela tinha
dificuldade em se sentar, usava uma longa saia florida arrastando no chão. Então
para ser cordial puxei um assunto qualquer. Comecei falando das crianças que
brincavam na praça.
- Muito bom observar as
crianças brincando. Bate uma vontade de voltar no tempo e ser criança, não é
mesmo?
A senhora me olhou com uma
cara azeda de reprovação. Olhou para as crianças que brincavam na praça e
soltou seu grunhido rouco:
- Estes diabretes! Não sinto
saudade nenhuma da minha infância. Crianças são más e perversas, se divertem
com a desgraça dos outros.
Engoli seco, fiquei
totalmente sem graça com a resposta da senhora. Tentei consertar da melhor
forma que pude.
- Não são todos, senhora! Um
ou outro, que a mãe não educou direito, acaba ficando meio travesso.
A velha franziu a testa e
olhou diretamente nos meus olhos.
- Um ou outro? Um bom
exemplo é você rapaz, vendo a minha idade me chama carinhosamente de senhora e
tenta me agradar com esta conversa fiada. Uma criança estaria me chamando de
velha e, se possível, chutando a minha canela.
Bom, infelizmente quanto a
esta observação eu não tinha argumentos. Resolvi então ficar calado e não dizer
mais nada. Continuei chupando o sorvete até que a própria senhora rompeu o
silêncio.
- Minha mãe foi mãe
solteira, e durante a minha infância toda eu fui motivo de chacota pelas
crianças da minha rua. Sabe o que elas diziam?
Respondi meio sem jeito:
- Não, não senhora! O que
elas diziam?
- Que meu pai havia fugido
porque eu era muito feia! Por isso eu não tinha pai.
Naquele momento compreendi
toda magoa daquela senhora. Coitada, anos se passaram e ela não conseguiu
esquecer as brincadeiras que sofreu de seus vizinhos quando pequena. Ela não
tinha culpa de pensar assim, afinal sua infância pelo visto foi uma verdadeira
tortura. Resolvi então reconfortá-la com uma palavra amistosa:
- Não é verdade senhora,
você é bonita. Seu pai provavelmente tinha problemas com a sua mãe, não foi
culpa sua ele ter ido embora.
A senhorinha olhou para mim
com cara de descrença.
- Quer realmente saber o que
aconteceu? O que fez meu pai ir embora?
- Se a senhora se sente a
vontade de falar sobre isso, pode falar! Eu escuto.
A senhora virou seu corpo em
minha direção, e inclinou sobre a bengala. Segurando com as duas mãos. Olho
dentro dos meus olhos e começou a contar a história.
Dizia ela, que em uma noite
de verão recebeu a visita de uma prima em casa, vinda da capital. Como sua mãe
morou a vida toda no interior, via a prima da capital como sendo privilegiada.
E escutava e seguia tudo que a prima falava. Durante a estadia da prima, certa
noite as duas foram até a um baile, que acontecia nos arredores da cidade.
Mesmo a mãe dela sendo
noiva, foi sozinha e escondida, com a prima. A intenção era só se divertir.
Chegando lá a prima da cidade começou a dançar com vários rapazes, e sua mãe
estava em um canto deslocada, pois era noiva e não queria dançar com ninguém.
Até que um rapaz alto, esguio, de cabelos pretos penteados para trás, veio ao
seu encontro. Ele trajava um impecável terno branco, e sapatos de cor preto que
cintilavam de tão bem engraxados. Seu cheiro era doce e quando a tomou nos
braços seu corpo era quente como um cobertor.
Inebriada com o belo rapaz,
a mãe da senhorinha dançou a noite toda com ele. Quando o baile já estava
terminando, o rapaz a levou para fora e pediu um beijo. Ela relutou um pouco,
mas devido à insistência ela acabou cedendo. Um calafrio subiu a sua espinha
quando beijou o rapaz. Em seguida sem dizer mais nada e sorrindo ele saiu
andando e desapareceu no meio da rua.
Ela foi para casa. Bastou
alguns dias para sua barriga começar a crescer e sentir náuseas. O pai, que até
então ainda era o noivo, casou com a mãe da senhora. A gravidez foi difícil para
a mãe, pois sentia muitas dores. Sonhava com o rapaz que havia dançado naquele
baile, quase que diariamente durante a gravidez. Nos sonhos ele olhava para ela
e dizia:
- Minha filha! Vai ser linda
a minha filha!
A mãe resolveu contar ao meu
pai quase no final da gravidez, sobre o beijo que havia dado no estranho. Ele
ficou muito bravo, mas perdoou e ficou ao lado dela até o dia em que o bebê
nasceu.
No dia do nascimento ao ver
a criança, o pai entrou em choque e disse que aquela aberração não podia ser
filha dele e foi embora. Nunca mais foi visto. Ao final da conversa a
senhorinha me disse que havia nascido com problema nas pernas, por isso seu pai
a abandonara. E devido a isso ela andou a vida toda com dificuldade e usava
saia para ninguém ver.
Fiquei muito sem graça
quando ela terminou a história, não sabia o que dizer. Fiquei calado olhando
para ela. Minha única reação foi oferecer sorvete. Para o meu espanto ela
aceitou. Mas quando pegou na casquinha quase que instantaneamente o sorvete
começou a derreter. Ela pediu desculpas, me entregou o sorvete e levantou sem
jeito. Levantou com tanta pressa que pisou sobre o meu pé. A dor foi muito
forte, e olhei para baixo. Curiosamente o vestido dela neste momento não cobria
mais seu “pé”.
Foi então que observei e
fiquei abismado, os pés da senhora pareciam patas iguais a de um bode. Aquilo
me deixou hipnotizado, a senhora possuía patas e não pés. Iguais as de um
animal. Ela saiu correndo e sumiu em meio à rua. E eu fiquei ali parado, sem
entender o que acabara de ver.
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