domingo, 29 de dezembro de 2013

A Senhora

Como já relatei em outras páginas, sempre há algo de estranho a minha espera. Não só vivencio situações inusitadas, como também as escuto de outras pessoas. Há um bom tempo em uma tarde de verão, eu estava sentado em uma praça tomando sorvete. Observava despretensiosamente as crianças brincando, quando uma voz rouca clamou ao meu lado.

Era uma senhora, com os seus sessenta beirando setenta anos. Andava apoiada sobre uma bengala de madeira negra, com uma coruja de prata na empunhadura. Olhou-me de cima a baixo, por fim pediu para se sentar no banco ao meu lado. Obviamente que não neguei o pedido da senhora.




Notei que ela tinha dificuldade em se sentar, usava uma longa saia florida arrastando no chão. Então para ser cordial puxei um assunto qualquer. Comecei falando das crianças que brincavam na praça.

- Muito bom observar as crianças brincando. Bate uma vontade de voltar no tempo e ser criança, não é mesmo?

A senhora me olhou com uma cara azeda de reprovação. Olhou para as crianças que brincavam na praça e soltou seu grunhido rouco:

- Estes diabretes! Não sinto saudade nenhuma da minha infância. Crianças são más e perversas, se divertem com a desgraça dos outros.

Engoli seco, fiquei totalmente sem graça com a resposta da senhora. Tentei consertar da melhor forma que pude.

- Não são todos, senhora! Um ou outro, que a mãe não educou direito, acaba ficando meio travesso.

A velha franziu a testa e olhou diretamente nos meus olhos.

- Um ou outro? Um bom exemplo é você rapaz, vendo a minha idade me chama carinhosamente de senhora e tenta me agradar com esta conversa fiada. Uma criança estaria me chamando de velha e, se possível, chutando a minha canela.

Bom, infelizmente quanto a esta observação eu não tinha argumentos. Resolvi então ficar calado e não dizer mais nada. Continuei chupando o sorvete até que a própria senhora rompeu o silêncio.

- Minha mãe foi mãe solteira, e durante a minha infância toda eu fui motivo de chacota pelas crianças da minha rua. Sabe o que elas diziam?

Respondi meio sem jeito:

- Não, não senhora! O que elas diziam?

- Que meu pai havia fugido porque eu era muito feia! Por isso eu não tinha pai.

Naquele momento compreendi toda magoa daquela senhora. Coitada, anos se passaram e ela não conseguiu esquecer as brincadeiras que sofreu de seus vizinhos quando pequena. Ela não tinha culpa de pensar assim, afinal sua infância pelo visto foi uma verdadeira tortura. Resolvi então reconfortá-la com uma palavra amistosa:

- Não é verdade senhora, você é bonita. Seu pai provavelmente tinha problemas com a sua mãe, não foi culpa sua ele ter ido embora.

A senhorinha olhou para mim com cara de descrença.

- Quer realmente saber o que aconteceu? O que fez meu pai ir embora?

- Se a senhora se sente a vontade de falar sobre isso, pode falar! Eu escuto.

A senhora virou seu corpo em minha direção, e inclinou sobre a bengala. Segurando com as duas mãos. Olho dentro dos meus olhos e começou a contar a história.

Dizia ela, que em uma noite de verão recebeu a visita de uma prima em casa, vinda da capital. Como sua mãe morou a vida toda no interior, via a prima da capital como sendo privilegiada. E escutava e seguia tudo que a prima falava. Durante a estadia da prima, certa noite as duas foram até a um baile, que acontecia nos arredores da cidade.

Mesmo a mãe dela sendo noiva, foi sozinha e escondida, com a prima. A intenção era só se divertir. Chegando lá a prima da cidade começou a dançar com vários rapazes, e sua mãe estava em um canto deslocada, pois era noiva e não queria dançar com ninguém. Até que um rapaz alto, esguio, de cabelos pretos penteados para trás, veio ao seu encontro. Ele trajava um impecável terno branco, e sapatos de cor preto que cintilavam de tão bem engraxados. Seu cheiro era doce e quando a tomou nos braços seu corpo era quente como um cobertor.

Inebriada com o belo rapaz, a mãe da senhorinha dançou a noite toda com ele. Quando o baile já estava terminando, o rapaz a levou para fora e pediu um beijo. Ela relutou um pouco, mas devido à insistência ela acabou cedendo. Um calafrio subiu a sua espinha quando beijou o rapaz. Em seguida sem dizer mais nada e sorrindo ele saiu andando e desapareceu no meio da rua.

Ela foi para casa. Bastou alguns dias para sua barriga começar a crescer e sentir náuseas. O pai, que até então ainda era o noivo, casou com a mãe da senhora. A gravidez foi difícil para a mãe, pois sentia muitas dores. Sonhava com o rapaz que havia dançado naquele baile, quase que diariamente durante a gravidez. Nos sonhos ele olhava para ela e dizia:

- Minha filha! Vai ser linda a minha filha!

A mãe resolveu contar ao meu pai quase no final da gravidez, sobre o beijo que havia dado no estranho. Ele ficou muito bravo, mas perdoou e ficou ao lado dela até o dia em que o bebê nasceu.

No dia do nascimento ao ver a criança, o pai entrou em choque e disse que aquela aberração não podia ser filha dele e foi embora. Nunca mais foi visto. Ao final da conversa a senhorinha me disse que havia nascido com problema nas pernas, por isso seu pai a abandonara. E devido a isso ela andou a vida toda com dificuldade e usava saia para ninguém ver.

Fiquei muito sem graça quando ela terminou a história, não sabia o que dizer. Fiquei calado olhando para ela. Minha única reação foi oferecer sorvete. Para o meu espanto ela aceitou. Mas quando pegou na casquinha quase que instantaneamente o sorvete começou a derreter. Ela pediu desculpas, me entregou o sorvete e levantou sem jeito. Levantou com tanta pressa que pisou sobre o meu pé. A dor foi muito forte, e olhei para baixo. Curiosamente o vestido dela neste momento não cobria mais seu “pé”.


Foi então que observei e fiquei abismado, os pés da senhora pareciam patas iguais a de um bode. Aquilo me deixou hipnotizado, a senhora possuía patas e não pés. Iguais as de um animal. Ela saiu correndo e sumiu em meio à rua. E eu fiquei ali parado, sem entender o que acabara de ver.

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