Um dos meus hobbies preferidos é
pescar. Acho que herdei isso do tempo em que morei na fazenda. Pois bem. Vocês
também já devem ter escutado o ditado: “história de pescador”. Quando eu morava
na fazenda escutei muitas histórias estranhas envolvendo pescaria, mas mal
sabia eu que a mais esquisita iria acontecer comigo.
Houve uma vez que viajei para o litoral
de Angra dos Reis. A proposta era pescar em uma pequena ilha com os amigos,
acampar e voltar no dia seguinte. Na época minha esposa não concordou muito bem
com a história, entretanto, durante o fim de semana juntei minhas coisas e
parti. Estávamos em cinco pessoas - eu e mais quatro companheiros.
Quando chegamos à doca para alugar o
barco, tivemos uma decepcionante notícia: o mar estava de ressaca e nenhum
barco estava indo até às ilhas. Era bonito de se ver, as ondas fortemente
batiam com violência no píer e espalhavam uma espuma branca pelo ar, como em um
brinde exagerado entre canecos de cerveja. Após algumas horas tentando
convencer alguém a nos levar, já estávamos cansados e desanimados. Mas, para
não perder a viagem ficamos pescando no píer.
Quando entardeceu resolvemos todos
voltar para casa, no momento caía uma garoa fininha e bem gelada. Eu estava
guardando as coisas no carro, quando um senhor só de bermuda, com um cabelo
comprido ralo e grisalho veio até a mim. Cumprimentou-me com uma voz rouca e
cansada:
- Boa tarde. É você que estava querendo
ir para ilha?
-Sim. Na verdade éramos nós.
- Eu posso levar vocês se quiserem.
A proposta foi tentadora. Reuni meus
amigos e perguntei se ainda estavam afim de ir para a ilha. Mas todos
declinaram a ideia, dizendo que estava muito tarde. Fiquei desapontado e
insisti por um bom tempo, até que um deles concordou - seu nome era Carlos. Nós
pegamos os nossos equipamentos do carro e fomos de encontro ao velho. O senhor
nos conduziu até o final do píer, onde se encontrava uma velha embarcação
conhecida como traineira. Era pintada em azul, porém a maresia lhe concedeu um
degradê peculiar e estranho, na lateral estava escrito Portitor Animarum.
O senhor passou a viajem inteira
quieto, enquanto isso eu ia batendo um papo com Carlos. Lembro que ficamos o
trajeto todo falando, como o pessoal era desanimado por não ter vindo conosco.
As ondas batiam fortemente no pequeno barco, e quando nos aproximamos das ilhas
o velho cessou o silêncio:
- Vocês querem pescar? Então aquela
pequena ilha ali é a melhor.
- Nós vamos embora amanhã, o senhor
pode vir nos buscar lá para o meio-dia.
O velho pareceu ignorar o que dissemos,
e simplesmente estendeu a mão e disse:
- São duas moedas, por cada um.
Minha vontade foi de rir. Quem pede
duas moedas?! Isso não era nem um preço. Enfim. Eu guardava em minha carteira
uma moeda antiga que ganhei do senhor dono de uma mercearia certa vez. Para
brincar eu retirei a moeda antiga e entreguei a ele dizendo:
- Essa moeda aqui paga a minha e a
dele. – Dei uma risada.
O velho abriu um sorriso amarelado,
olhou para mim e para o Carlos, guardou a moeda no bolso, pegou nossas coisas e
atirou na água. Abaixou, pegou um facão cujo cabo parecia ser feito de osso, e
portando um sorriso perturbador em seu rosto clamou:
- Sim, isso paga pela passagem das duas
almas. Agora, desçam do barco.
Na hora ficamos apavorados. Lembro que
o Carlos tentou argumentar, mas o velho veio andando em nossa direção com o
facão, a única solução foi pular na água. Nadamos até a ilhota. Tentamos pegar
o máximo de coisas nossas na água. Estava tudo encharcado. Por sorte a barraca
ficou boiando e conseguimos recuperá-la. O lampião, afundou. Ao chegar ainda
atônitos com o que havia acontecido, minha mente só pensava que o velho não
iria voltar, e para distrair fui montar a barraca.
A ilha realmente era muito pequena, a
praia era bem estreita com uma pequena mata, não parecia ter água doce. Ainda
bem que tínhamos duas garrafas de água. Montamos a barraca na borda entre a
pequena mata e a praia. Acendemos uma fogueira com muito custo, pois ventava
muito. E por alguns minutos ficamos os dois sentados olhando um para a cara do
outro, provavelmente tentando entender o que havia acontecido.
- Relaxa. Agora já aconteceu. Vamos
pescar, e amanhã a gente vê o que faz. – Disse Carlos, com um olhar de
assustado, mas tentando passar coragem.
Concordei e fomos para a beirada da
praia, jogamos o anzol na água e ficamos ali, alguns minutos esperando algo
beliscar.
Foi quando uma onda mais forte bateu, e
quando sua crista se formou deu a impressão de que vários rostos deformados
estavam entre a água. Olhei aterrorizado para o Carlos e perguntei:
- Você viu isso?
- Sim. Que porra era aquela?
A escuridão chegou e com ela um
nevoeiro denso se formou na ilha. Não havíamos pegado peixe algum, eu estava
muito preocupado em saber como iríamos embora no outro dia. As ondas batiam
muito forte na praia, fiquei olhando para ver se apareciam de novo rostos na
água. Cheguei à conclusão que devia ser óleo na água que deram a impressão que
poderiam ser rostos. Afinal, se conseguimos ver coisas nas nuvens porque não na
espuma das ondas? Como nossa roupa estava molhada, o frio começou a nos
castigar, quando Carlos sussurrou para mim:
- Escuta! Espera a onda bater e escuta.
Meu Deus, aquilo era aterrador! Quando
as ondas batiam podíamos ouvir bem baixinho o que pareciam ser lamentos,
murmúrios, gritos de dor, e por vezes o choro de crianças.
Recolhi a vara e decidi que iria para a
barraca, Carlos fez o mesmo, fomos juntos, ficando sentados à porta. Não
tínhamos o que comer, afinal, nossa intenção era comer peixe. Tinha levado
alguns pacotes de biscoitos, mas quando o velho jogou as mochilas na água eles
ficaram imprestáveis. Para piorar as coisas um vento forte apagou a fogueira,
tentei reacender, mas o meu isqueiro parou de funcionar. Com frio, e
assustados, entramos para a barraca, fechamos o zíper e ficamos deitados ali.
Foi quando as coisas pioraram. Os
sussurros e gemidos se tornaram constantes, e cada vez mais altos, Carlos
queria abrir a barraca, mas eu não deixei. Começamos a ouvir pegadas ao redor
da barraca, e sobre a lona começaram a aparecer formas de mãos, como se
estivessem pressionando a lona para dentro. Carlos pegou a faca de limpar
peixe, e saiu, e tudo o que viu foi uma névoa densa que não o deixava enxergar
um palmo de distância. Voltou para a barraca e assim foi a noite toda, barulhos
de passos, gritos, choros, mãos na barraca. Foi a pior noite da minha vida.
Pode esta parecer uma frase batida, porém não teria outra forma de descrever o
horror que passei como sendo 'indescritível'.
Não dormimos. E pela manhã os raios de
sol bateram na barraca, saímos e estávamos cercados de pegadas na areia,
pegadas humanas, outras que pareciam de animais, e algumas que não se
assemelhavam à nada que já havíamos visto. Mortos de fome ficamos até o sol de
meio-dia cozinhar nossas cabeças. Foi quando Carlos já meio insano, balbuciou
algumas palavras que não entendi e correu para o mar, furou uma onda e saiu
nadando, e eu fiquei sem saber o que fazer. Fiquei ali parado, olhando, sentei
na praia e segurei meus joelhos e comecei a rezar - assim foi a tarde inteira,
chorando e rezando. Já estava convicto de que iria morrer ali.
Carlos não voltou - sumiu nadando no
horizonte. E eu estava faminto e sem coragem de nadar pela minha vida. A noite
chegou e mais uma vez a tortura prosseguiu, vozes, gritos, sussurros, eu já
estava ficando louco, estava dentro da barraca agoniado, quando em um estalo de
coragem, saí da barraca e gritei:
- O que você quer? Aparece, seu filho
da puta!
Para o meu desespero uma voz,
respondeu.
- Eu quero sentir seu sofrimento antes
de levar a sua alma.
Não tinha mais duvidas, se ficasse ali
eu iria morrer. Pensei no Carlos - se ele havia conseguido se salvar. Pulei na
água e nadei, e para meu maior desespero estava cercado dentro da água do que
pareciam ser almas, foi desesperador, fechei os olhos e sem saber onde estava
indo nadei. Meus braços e pernas já estavam pesados quando abri os olhos. A
ilha havia ficado para trás, entretanto eu estava em alto mar, eu ia morrer.
Meus olhos já estavam se fechando e sem forças comecei a sentir a água entrar
pela minha boca e preencher meus pulmões, quando uma luz forte me cegou.
Acordei
horas depois dentro de um barco da marinha mercante. Eu estava com fome,
desnutrido, exausto, mas mesmo assim contei minha história. Depois em terra fui
avaliado por um médico e um psiquiatra, que chegaram à conclusão de que devido
à desnutrição e o sol forte, minha mente inventou todo o ocorrido. O corpo de
Carlos nunca foi encontrado, e nos registros da marinha o barco Portitor Animarum
havia afundado em 1866.
Cruz credo!!!! Já dizia minha avó: "Nunca aceite carona de velhos lobos do mar". Ainda bem que segui seu conselho... Muito bom o conto!!!
ResponderExcluirObrigado! Ainda bem que escutou sua avó.
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