domingo, 13 de outubro de 2013

A Ilha

Um dos meus hobbies preferidos é pescar. Acho que herdei isso do tempo em que morei na fazenda. Pois bem. Vocês também já devem ter escutado o ditado: “história de pescador”. Quando eu morava na fazenda escutei muitas histórias estranhas envolvendo pescaria, mas mal sabia eu que a mais esquisita iria acontecer comigo.


Houve uma vez que viajei para o litoral de Angra dos Reis. A proposta era pescar em uma pequena ilha com os amigos, acampar e voltar no dia seguinte. Na época minha esposa não concordou muito bem com a história, entretanto, durante o fim de semana juntei minhas coisas e parti. Estávamos em cinco pessoas - eu e mais quatro companheiros.

Quando chegamos à doca para alugar o barco, tivemos uma decepcionante notícia: o mar estava de ressaca e nenhum barco estava indo até às ilhas. Era bonito de se ver, as ondas fortemente batiam com violência no píer e espalhavam uma espuma branca pelo ar, como em um brinde exagerado entre canecos de cerveja. Após algumas horas tentando convencer alguém a nos levar, já estávamos cansados e desanimados. Mas, para não perder a viagem ficamos pescando no píer.

Quando entardeceu resolvemos todos voltar para casa, no momento caía uma garoa fininha e bem gelada. Eu estava guardando as coisas no carro, quando um senhor só de bermuda, com um cabelo comprido ralo e grisalho veio até a mim. Cumprimentou-me com uma voz rouca e cansada:

- Boa tarde. É você que estava querendo ir para ilha?  

-Sim. Na verdade éramos nós.

- Eu posso levar vocês se quiserem.

A proposta foi tentadora. Reuni meus amigos e perguntei se ainda estavam afim de ir para a ilha. Mas todos declinaram a ideia, dizendo que estava muito tarde. Fiquei desapontado e insisti por um bom tempo, até que um deles concordou - seu nome era Carlos. Nós pegamos os nossos equipamentos do carro e fomos de encontro ao velho. O senhor nos conduziu até o final do píer, onde se encontrava uma velha embarcação conhecida como traineira. Era pintada em azul, porém a maresia lhe concedeu um degradê peculiar e estranho, na lateral estava escrito Portitor Animarum.

O senhor passou a viajem inteira quieto, enquanto isso eu ia batendo um papo com Carlos. Lembro que ficamos o trajeto todo falando, como o pessoal era desanimado por não ter vindo conosco. As ondas batiam fortemente no pequeno barco, e quando nos aproximamos das ilhas o velho cessou o silêncio:

- Vocês querem pescar? Então aquela pequena ilha ali é a melhor.

- Nós vamos embora amanhã, o senhor pode vir nos buscar lá para o meio-dia.

O velho pareceu ignorar o que dissemos, e simplesmente estendeu a mão e disse:

- São duas moedas, por cada um.


Minha vontade foi de rir. Quem pede duas moedas?! Isso não era nem um preço. Enfim. Eu guardava em minha carteira uma moeda antiga que ganhei do senhor dono de uma mercearia certa vez. Para brincar eu retirei a moeda antiga e entreguei a ele dizendo:

- Essa moeda aqui paga a minha e a dele. –  Dei uma risada.

O velho abriu um sorriso amarelado, olhou para mim e para o Carlos, guardou a moeda no bolso, pegou nossas coisas e atirou na água. Abaixou, pegou um facão cujo cabo parecia ser feito de osso, e portando um sorriso perturbador em seu rosto clamou:

- Sim, isso paga pela passagem das duas almas. Agora, desçam do barco.

Na hora ficamos apavorados. Lembro que o Carlos tentou argumentar, mas o velho veio andando em nossa direção com o facão, a única solução foi pular na água. Nadamos até a ilhota. Tentamos pegar o máximo de coisas nossas na água. Estava tudo encharcado. Por sorte a barraca ficou boiando e conseguimos recuperá-la. O lampião, afundou. Ao chegar ainda atônitos com o que havia acontecido, minha mente só pensava que o velho não iria voltar, e para distrair fui montar a barraca.

A ilha realmente era muito pequena, a praia era bem estreita com uma pequena mata, não parecia ter água doce. Ainda bem que tínhamos duas garrafas de água. Montamos a barraca na borda entre a pequena mata e a praia. Acendemos uma fogueira com muito custo, pois ventava muito. E por alguns minutos ficamos os dois sentados olhando um para a cara do outro, provavelmente tentando entender o que havia acontecido.

- Relaxa. Agora já aconteceu. Vamos pescar, e amanhã a gente vê o que faz. – Disse Carlos, com um olhar de assustado, mas tentando passar coragem.

Concordei e fomos para a beirada da praia, jogamos o anzol na água e ficamos ali, alguns minutos esperando algo beliscar.

Foi quando uma onda mais forte bateu, e quando sua crista se formou deu a impressão de que vários rostos deformados estavam entre a água. Olhei aterrorizado para o Carlos e perguntei:

- Você viu isso?

- Sim. Que porra era aquela?

A escuridão chegou e com ela um nevoeiro denso se formou na ilha. Não havíamos pegado peixe algum, eu estava muito preocupado em saber como iríamos embora no outro dia. As ondas batiam muito forte na praia, fiquei olhando para ver se apareciam de novo rostos na água. Cheguei à conclusão que devia ser óleo na água que deram a impressão que poderiam ser rostos. Afinal, se conseguimos ver coisas nas nuvens porque não na espuma das ondas? Como nossa roupa estava molhada, o frio começou a nos castigar, quando Carlos sussurrou para mim:

- Escuta! Espera a onda bater e escuta.

Meu Deus, aquilo era aterrador! Quando as ondas batiam podíamos ouvir bem baixinho o que pareciam ser lamentos, murmúrios, gritos de dor, e por vezes o choro de crianças.

Recolhi a vara e decidi que iria para a barraca, Carlos fez o mesmo, fomos juntos, ficando sentados à porta. Não tínhamos o que comer, afinal, nossa intenção era comer peixe. Tinha levado alguns pacotes de biscoitos, mas quando o velho jogou as mochilas na água eles ficaram imprestáveis. Para piorar as coisas um vento forte apagou a fogueira, tentei reacender, mas o meu isqueiro parou de funcionar. Com frio, e assustados, entramos para a barraca, fechamos o zíper e ficamos deitados ali.

Foi quando as coisas pioraram. Os sussurros e gemidos se tornaram constantes, e cada vez mais altos, Carlos queria abrir a barraca, mas eu não deixei. Começamos a ouvir pegadas ao redor da barraca, e sobre a lona começaram a aparecer formas de mãos, como se estivessem pressionando a lona para dentro. Carlos pegou a faca de limpar peixe, e saiu, e tudo o que viu foi uma névoa densa que não o deixava enxergar um palmo de distância. Voltou para a barraca e assim foi a noite toda, barulhos de passos, gritos, choros, mãos na barraca. Foi a pior noite da minha vida. Pode esta parecer uma frase batida, porém não teria outra forma de descrever o horror que passei como sendo 'indescritível'.

Não dormimos. E pela manhã os raios de sol bateram na barraca, saímos e estávamos cercados de pegadas na areia, pegadas humanas, outras que pareciam de animais, e algumas que não se assemelhavam à nada que já havíamos visto. Mortos de fome ficamos até o sol de meio-dia cozinhar nossas cabeças. Foi quando Carlos já meio insano, balbuciou algumas palavras que não entendi e correu para o mar, furou uma onda e saiu nadando, e eu fiquei sem saber o que fazer. Fiquei ali parado, olhando, sentei na praia e segurei meus joelhos e comecei a rezar - assim foi a tarde inteira, chorando e rezando. Já estava convicto de que iria morrer ali.

Carlos não voltou - sumiu nadando no horizonte. E eu estava faminto e sem coragem de nadar pela minha vida. A noite chegou e mais uma vez a tortura prosseguiu, vozes, gritos, sussurros, eu já estava ficando louco, estava dentro da barraca agoniado, quando em um estalo de coragem, saí da barraca e gritei:

- O que você quer? Aparece, seu filho da puta!

Para o meu desespero uma voz, respondeu.

- Eu quero sentir seu sofrimento antes de levar a sua alma.

Não tinha mais duvidas, se ficasse ali eu iria morrer. Pensei no Carlos - se ele havia conseguido se salvar. Pulei na água e nadei, e para meu maior desespero estava cercado dentro da água do que pareciam ser almas, foi desesperador, fechei os olhos e sem saber onde estava indo nadei. Meus braços e pernas já estavam pesados quando abri os olhos. A ilha havia ficado para trás, entretanto eu estava em alto mar, eu ia morrer. Meus olhos já estavam se fechando e sem forças comecei a sentir a água entrar pela minha boca e preencher meus pulmões, quando uma luz forte me cegou.

Acordei horas depois dentro de um barco da marinha mercante. Eu estava com fome, desnutrido, exausto, mas mesmo assim contei minha história. Depois em terra fui avaliado por um médico e um psiquiatra, que chegaram à conclusão de que devido à desnutrição e o sol forte, minha mente inventou todo o ocorrido. O corpo de Carlos nunca foi encontrado, e nos registros da marinha o barco Portitor Animarum havia afundado em 1866.   

2 comentários:

  1. Cruz credo!!!! Já dizia minha avó: "Nunca aceite carona de velhos lobos do mar". Ainda bem que segui seu conselho... Muito bom o conto!!!

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  2. Obrigado! Ainda bem que escutou sua avó.

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