domingo, 27 de outubro de 2013

O Quarto

Em uma das minhas viagens, quando ainda era jovem, me deparei com um sujeito muito estranho. A situação que nos levou a esse encontro não foi a mais normal também. Eu estava em uma rota pelo interior de Minas Gerais, quando parei em uma pequena cidade. O vilarejo possuía apenas uma pousada com quatro quartos. Acredite, somente quatro quartos, sendo o único lugar para descansar. Quando cheguei, a moça da recepção disse que já haviam alugado o último. Desanimado com a notícia, me preparei para dormir no banco de trás da velha Belina.


Estava forrando o banco com um cobertor quando escutei uma batida no vidro do carro. Olhei e observei um sujeito: esguio, de cabelo comprido preto, já com algumas mechas grisalhas, usando uma camiseta branca e um jeans surrado. Na hora fiquei meio assustado com o sujeito, mas abri o vidro e cumprimentei:
- Boa noite. O que o senhor quer?
O tal deu um sorriso tosco e passou a mão entre os cabelos, retirando-os da frente dos olhos. Pôs a cabeça dentro do carro, e comentou:
- É uma bela banheira! Pelo que a moça na pousada disse você é que deseja algo.
Fiquei meio espantado, confesso. Pensei que seria assaltado. Então devagar enfiei uma mão debaixo do banco e apanhei a tranca do carro. Segurei firme e continuei o assunto:
- É, eu precisava de um quarto, mas estão todos alugados. –  dependendo da reação do cara eu estava pronto para dar uma pancada na cara dele.
- Eu peguei o último quarto. E como é a minha última noite aqui, não estava afim de passá-la sozinho.
- Olha, cara, respeito sua decisão sexual, mas eu não sou gay!
O homem retirou do bolso um maço de cigarros e um isqueiro, acendeu, deu um trago e jogou a fumaça para o alto. Olhou nos meus olhos e deu uma gargalhada.
- Não sou gay, cara, e nem bandido. Pode soltar essa tranca que está em baixo do banco. Só queria ajudar. Minha vida foi andar pelas estradas, sei como é ruim dormir em banco de carro. Aquele ali é o meu.
Apontou para um lindo Opala verde de rodas em detalhes brancos, com parachoque e retrovisores cromados. Naquela época era um carrão, e só quem tinha dinheiro tinha um daquele. Soltei a tranca e resolvi ser mais amistoso.
- Desculpa. Você me assustou. De qualquer forma, obrigado. Mas vou dormir aqui.
- Meu caro, aproveite a oferta. Afinal, agora já sei que vai dormir aqui no carro. Se eu quiser fazer algo contigo, volto aqui quando estiver dormindo.
A frase me pareceu ameaçadora. Entretanto, ele estava correto. Não estava mais seguro no carro do que no quarto com ele. E já eram dois dias de viagem dormindo em postos, estava precisando descansar de verdade.
- Vamos lá, cara, não seja tolo. Vou pedir pra moça da recepção arrumar um colchão pra você. Te espero lá dentro.
O sujeito deu as costas, jogou o cigarro no chão e seguiu para dentro da pousada. Demorei alguns minutos para concordar com a ideia e entrar. Assim que entrei a garota da recepção me informou o número do quarto enquanto me entregava uma chave. Era um pequeno corredor até o quarto. Ao chegar abri a porta, e vi que o homem estava deitado na cama segurando um copo de uísque.
- Aí no chão, rapaz. É todo seu o colchão. Quer um trago de uísque?
- Não, obrigado. Quanto vai ficar o quarto para eu te pagar?
- Relaxa. Já está tudo pago.
O homem levantou e retirou do bolso um maço de notas, jogou-as espalhando sobre a cama. Tomou um gole do uísque e retirou a camisa. Nas suas costas havia uma tatuagem enorme, de números, que parecia ter sido feita com ferro de marcar gado.
03:20:46 – 13/04/1969
Ele me pegou olhando para a marca em suas costas, que pareciam ser uma hora precedida de alguma data. Não tinha como não observar, pois de alguma forma aquela imagem me dava uma sensação de dor. Como se ele tivesse conseguido a marca com muito sofrimento.
- Aposto que está curioso para saber o motivo da tatuagem. – disse o sujeito.
- Não. Só achei diferente. Por falar nisso, qual é o seu nome? – falei tentando disfarçar o nervosismo.
- Lucius. Antes que você morra prematuramente de curiosidade, vou te contar o porquê da “tatuagem”.
- Há muito tempo eu estava fodido, e vim parar nesta mesma pousada, só tinha este quarto. Eu já havia caminhado muitos dias a pé, estava morto de cansaço quando um sujeito me ofereceu acolhida - para dividir o quarto com ele.

Minhas mãos começaram a suar frio. Como assim? Ele estava repetindo praticamente a mesma história que havia se passado entre mim e ele. A vontade foi de sair correndo mas alguma coisa me prendeu ali, talvez a curiosidade, ou o próprio medo. O fato é que fiquei e continuei ouvindo, o homem voltar a falar.
- Durante a noite nós conversamos sobre a estrada, contei que era andarilho e que ganhava a vida indo de cidade em cidade. Sempre achava um bico para fazer. Nunca morei em um lugar fixo desde meus doze anos de idade. Ele perguntou se eu não estava cansado desta vida. Respondi que sim, e foi quando ele me ofereceu uma proposta.
Não consegui segurar a minha boca e acabei perguntando involuntariamente.
- Qual proposta?
- Ele me daria tudo que eu quisesse. Bastava naquele dia eu entregar minha alma a ele. E foi o que fiz. Assim que ganhei esta marca.
Era inacreditável, a história era absurda. Achei que ele queria apenas me assustar dizendo aquilo. E normalmente ele deitou-se na cama e voltou a beber o uísque. Eu não estava satisfeito, deveria ter ido embora, era óbvio que cara era pirado da cabeça. Mas em vez de eu pegar as minhas coisas e ir embora, o provoquei com uma pergunta:
- Mas o que você faz aqui então?
- Vim tentar barganhar minha alma de volta. Afinal, após a meia-noite de hoje será a data do meu último dia de vida - a que ele marcou nas minhas costas. Quando ele vier me buscar vou barganhar a sua alma com ele em troca da minha.
No momento eu não quis entender o que ele disse, mas a ficha logo caiu. Eu levantei e fui até a porta, mas ela estava trancada. Tentei abrir com a minha chave, e não consegui. Ele retirou de baixo do colchão uma arma calibre .38 e apontou pra mim. Virei para ele desesperado implorando pela minha vida:
- Por favor, cara! Eu não fiz nada, não atire em mim.
Ele caminhou em minha direção apontando a arma para o meu peito. Olhou dentro dos meus olhos, e ficou parado. Durante alguns bons minutos ficamos ali, parados, desse jeito. Ele com a arma sem dizer nada, me encarando, e eu chorando, implorando pela minha vida. Até que ele me deu a arma. Minha reação foi pegar e apontar para ele.
- Por favor, só quero sair daqui não quero atirar em você.
- Vamos! Atira! Me liberte desse sofrimento. – gritou o homem.
Eu mirei bem no meio de sua testa, mas não consegui atirar. Abaixei a arma. Ele a pegou das minhas mãos. Eu sequer resisti. Não sabia o porquê, mas não tive coragem de atirar. Olha que sou um exímio atirador. Para meu espanto ele apontou para sua própria cabeça e atirou. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Em todas, a arma não disparou.
- Você não acredita em mim, né? Mas tudo bem. Você é especial, eu posso sentir. O quarto já está pago, pode ficar com ele. Eu vou aproveitar minhas últimas horas de vida.
Essas foram suas últimas palavras, antes de jogar a arma no chão. Ele saiu, e minutos depois eu pude ouvir o barulho do seu carro em alta velocidade. Peguei a arma no chão e abri, em seu tambor tinham oito balas, exatamente a quantidade que cabe na arma. Ele deu cinco disparos contra a própria cabeça e todos falharam.
Aquela noite eu dormi apavorado, mas fiquei no quarto, passei a chave e arrastei uma escrivaninha para trás da porta. Deitei e dormi o pouco que consegui. Pela manhã levantei e fui embora, sem conversar com ninguém. Deixei a arma e os pertences do sujeito estranho para trás. Peguei a estrada.
Percorrendo a estrada, eu não conseguia parar de pensar no que aconteceu. Logo a frente do meu caminho estava uma viatura da polícia com a sirene ligada. Um policial fazia sinal para reduzir a velocidade. Quando cheguei próximo, vi o Opala verde, caído em uma ribanceira. Eu parei meu carro e perguntei ao policial.
- Senhor, bom dia. As pessoas que estavam no carro estão bem?
- Não, meu caro, era apenas um senhor e está morto.
Apesar de ter reconhecido o carro, foi nesta hora que tive certeza. Era o Lucius, o sujeito estranho da noite anterior. E a data era treze de abril de mil novecentos e sessenta e nove. Mas aquilo só podia ser coincidência. Por garantia, resolvi fazer uma última pergunta ao policial:
- Senhor, o carro bateu agora pela manhã?
- Não. Foi de madrugada. E como recebemos um chamado no orelhão de uma pessoa que não se identificou pensamos que fosse trote.
- Que horas foi o chamado?
- Umas 3:20 da madrugada.

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