Nunca me senti bem em um velório
ou enterro, pra falar a verdade não era medo, mas uma sensação de não saber
como se portar em tal ocasião. Eu não era muito bom em externar meus
sentimentos, então ficava inquieto quando ia a um enterro, pois não sabia o que
dizer aos parentes e se devia chorar ou coisa parecida. Enfim estes momentos
sempre são inadiáveis, após muito tempo sem ir a um velório, recebi em casa um
telefonema informando que um grande amigo de infância havia morrido. Nesse
período eu já estava casado e o meu primeiro filho já havia nascido.
Expliquei o ocorrido a minha
esposa e viajei com urgência para participar pelo menos do enterro, já que o
velório provavelmente não iria dar tempo. Como era de costume nas cidadezinhas
da minha região o velório seguia da casa do falecido até o cemitério para o
enterro. Cheguei bem encima da hora para o enterro e como a rodoviária ficava
próxima ao cemitério, fui direto. Mas quando cheguei para minha surpresa não
havia ninguém, provavelmente o cortejo estava atrasado.
Sentei então em um banco de
concreto sob uma árvore esperando o cortejo, notei que outro enterro acontecia
no local, olhei para as pessoas em volta da cova aberta e vi que uma garotinha
estava em pé olhando para dentro do buraco, no momento achei muito cruel uma
criança ter que passar por isso, mas depois cogitei que pela idade não devia
estar nem entendendo o que se passava. A cova foi fechada e as pessoas vieram
caminhando em minha direção, algumas pararam próximas outras seguiram.
Pela hora o caixão do meu amigo
já devia ter chego, e minha cabeça vagava pelos anos de garoto que convivemos,
as pescarias, as fogueiras, as tardes na praça. Foi quando meu raciocínio
cortou sobre o som doce de uma voz de criança.
- Moço! Você está bem.
Olhei para o lado e dei de cara
com a garotinha sentada no banco, minha mente estava tão longe que nem vi ela
se aproximar, achei curiosa a pergunta dela. Será que mesmo sem perceber a
minha tristeza era tão aparente assim, passei então as mãos nos olhos para ver
se estava chorando, mas não estava. Virei-me para a menininha que me olhava com
um sorriso e perguntei:
- Estou sim. E você?
Com um sorriso largo ela
continuou a conversa.
- Sim. Hoje o dia está bonito
né?!
- Está muito bonito mesmo.
Não havia reparado que o dia
estava realmente muito bonito, o céu estava limpinho com pouquíssimas nuvens, o
sol brilhava intensamente e uma leve brisa batia refrescando o dia. Estava
muito agradável e se não fosse pelo ocorrido seria um daqueles dias em que
sentiria vontade de ir à praia ou tomar um banho de cachoeira. Enquanto pensava
nisso fui bombardeado de novo pela pequena garota.
- Você gosta de sorvete?
- Sim. Sorvete é muito gostoso.
- Meu pai prometeu que eu iria
ganhar um quando chegasse em casa.
- Nossa então você deve estar
morrendo de vontade de ir pra casa?
- Não. Ele sumiu! No caminho eu
dormi no carro e depois eu nunca mais vi ele.
Aquilo cortou meu coração, eu
sabia no momento da resposta, que o pai da garota provavelmente havia morrido,
mas por impulso eu perguntei.
- O seu pai foi embora?
- Sim. Ele foi, eu gostava muito
dele.
Meu deus o que eu havia feito,
porque fui tocar neste assunto com a pobre garotinha, mas o estranho é que ela
não estava sorrindo e tão pouco estava com cara de tristeza. Eu não sabia o que
dizer para reparar o que havia dito. Mas me pareceu que ela ainda não entendia
que o seu pai não iria voltar.
- Não fica triste não ele vai
voltar.
- Não estou triste. Eu tenho
muito amigos aqui e nós brincamos todos os dias.
- Nossa que legal você tem muitos amigos aqui na cidade.
- Não seu bobo, aqui no trabalho
do vovô.
Minha cara foi de espanto na
hora, não consegui disfarçar nem um pouco o que a garota havia dito. Se eu bem
entendi o avô trabalhava ali, mas que tipo de avô é esse que traz a neta para
ficar em um cemitério. Não consegui compreender achei que a garota tivesse
falando bobeira, sabe como são as crianças misturam tudo dentro da cabecinha
delas. Então perguntei para ter certeza se o avô trabalhava ali no cemitério.
- O seu avô trabalha aqui no
cemitério?
- Sim. Olha ele ali.
Olhei para onde a garota apontava
e vi o coveiro que retornou meu olhar com um aceno de mão. Acenei de volta por
educação, só que por dentro estava com raiva, como um avô deixa uma criança
ficar no cemitério o dia todo vendo enterros. E a única diversão é brincar com
as crianças que aparecem por aqui.
- Você esta bravo, tio.
- Não. O tio não está bravo, por
falar nisso qual é o seu nome?
- Ana Beatriz. Mas o vovô e todo
mundo me chamam de Ana.
Ela virou de relance para o
portal do cemitério e ficou olhando com cara de espanto, depois olhou pra mim e
com um tom de seriedade que lembrava a um adulto falou.
- Tio o seu amigo chegou. Ele
falou que sabe que você não gosta de estar aqui, por isso te pede desculpas e
que está feliz por ter vindo dar um adeus a ele.
- Meu amigo... Como assim meu
amigo.
- Agora eu vou brincar.
A garotinha levantou e saiu
correndo entre os túmulos, me levantei para impedi-la de ir, porém avistei o caixão
entrando pelo portal trazendo familiares e amigos com o cortejo. Era o meu
amigo chegando para ser enterrado, perdi a garotinha de vista. Não sei explicar
o desespero que me deu quando ela pronunciou aquelas palavras. Rapidamente as
pessoas se aproximaram e fui cumprimentá-las oferecendo meus pêsames à família.
Durante todo o enterro não
consegui parar de pensar no que a pequenina mocinha havia me dito, não achava
direito ela viver neste local, provavelmente foi por isso que disse aquela
frase estranha. Como se o cadáver do meu amigo pudesse se comunicar com ela.
Não, definitivamente aquilo não estava correto. Terminei de me despedir do meu
amigo e assim que o enterro acabou fui à procura do coveiro.
Encontrei o velho coveiro
agachado sobre um tumulo ajeitando as flores, ele olhava para a lápide com os
olhos marejados. Refuguei diante da imagem e pensei por duas vezes se devia
mesmo tocar no assunto da neta. Decidi por falar, mas tentei não ser
indelicado.
- Bom dia. O senhor que é o avô
da Ana?
- Sim. Sou eu mesmo.
- Desculpa se estou sendo um
pouco intransigente. Mas a pouco tive uma conversa estranha com sua neta e
gostaria de conversar contigo.
- Meu jovem você e minha neta
tiveram uma conversa?! Isso sim é estranho.
No momento não intendi a frase do
velho coveiro, fiquei atônito olhando para ele, o senhor levantou e apontou
para a lápide. E escrito nela estava, Ana Beatriz Souza Figueiredo. Não
conseguia conceber e fiz a pergunta obvia.
- Sua neta está morta?
-Sim. Morreu há um ano, ela e meu
filho estavam voltando de um passeio para casa. Foi demais para ele perder a
filha, está internado até hoje a única coisa que diz é: - Tenho que levar a Ana
para tomar sorvete.
Engoli seco a informação sem
acreditar no que estava ouvindo, não consegui mais prosseguir com a conversa me
virei e fui embora. Confesso que aquela não foi a ultima vez que eu veria Ana,
mas isso é outra história.
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