domingo, 15 de setembro de 2013

A Garotinha

Nunca me senti bem em um velório ou enterro, pra falar a verdade não era medo, mas uma sensação de não saber como se portar em tal ocasião. Eu não era muito bom em externar meus sentimentos, então ficava inquieto quando ia a um enterro, pois não sabia o que dizer aos parentes e se devia chorar ou coisa parecida. Enfim estes momentos sempre são inadiáveis, após muito tempo sem ir a um velório, recebi em casa um telefonema informando que um grande amigo de infância havia morrido. Nesse período eu já estava casado e o meu primeiro filho já havia nascido.

Expliquei o ocorrido a minha esposa e viajei com urgência para participar pelo menos do enterro, já que o velório provavelmente não iria dar tempo. Como era de costume nas cidadezinhas da minha região o velório seguia da casa do falecido até o cemitério para o enterro. Cheguei bem encima da hora para o enterro e como a rodoviária ficava próxima ao cemitério, fui direto. Mas quando cheguei para minha surpresa não havia ninguém, provavelmente o cortejo estava atrasado.

Sentei então em um banco de concreto sob uma árvore esperando o cortejo, notei que outro enterro acontecia no local, olhei para as pessoas em volta da cova aberta e vi que uma garotinha estava em pé olhando para dentro do buraco, no momento achei muito cruel uma criança ter que passar por isso, mas depois cogitei que pela idade não devia estar nem entendendo o que se passava. A cova foi fechada e as pessoas vieram caminhando em minha direção, algumas pararam próximas outras seguiram.

Pela hora o caixão do meu amigo já devia ter chego, e minha cabeça vagava pelos anos de garoto que convivemos, as pescarias, as fogueiras, as tardes na praça. Foi quando meu raciocínio cortou sobre o som doce de uma voz de criança.

- Moço! Você está bem.

Olhei para o lado e dei de cara com a garotinha sentada no banco, minha mente estava tão longe que nem vi ela se aproximar, achei curiosa a pergunta dela. Será que mesmo sem perceber a minha tristeza era tão aparente assim, passei então as mãos nos olhos para ver se estava chorando, mas não estava. Virei-me para a menininha que me olhava com um sorriso e perguntei:

- Estou sim. E você?

Com um sorriso largo ela continuou a conversa.

- Sim. Hoje o dia está bonito né?!

- Está muito bonito mesmo.

Não havia reparado que o dia estava realmente muito bonito, o céu estava limpinho com pouquíssimas nuvens, o sol brilhava intensamente e uma leve brisa batia refrescando o dia. Estava muito agradável e se não fosse pelo ocorrido seria um daqueles dias em que sentiria vontade de ir à praia ou tomar um banho de cachoeira. Enquanto pensava nisso fui bombardeado de novo pela pequena garota.

- Você gosta de sorvete?

- Sim. Sorvete é muito gostoso.

- Meu pai prometeu que eu iria ganhar um quando chegasse em casa.

- Nossa então você deve estar morrendo de vontade de ir pra casa?

- Não. Ele sumiu! No caminho eu dormi no carro e depois eu nunca mais vi ele.

Aquilo cortou meu coração, eu sabia no momento da resposta, que o pai da garota provavelmente havia morrido, mas por impulso eu perguntei.

- O seu pai foi embora?

- Sim. Ele foi, eu gostava muito dele.

Meu deus o que eu havia feito, porque fui tocar neste assunto com a pobre garotinha, mas o estranho é que ela não estava sorrindo e tão pouco estava com cara de tristeza. Eu não sabia o que dizer para reparar o que havia dito. Mas me pareceu que ela ainda não entendia que o seu pai não iria voltar.

- Não fica triste não ele vai voltar.

- Não estou triste. Eu tenho muito amigos aqui e nós brincamos todos os dias.

- Nossa que legal você tem muitos amigos aqui na cidade.

- Não seu bobo, aqui no trabalho do vovô.

Minha cara foi de espanto na hora, não consegui disfarçar nem um pouco o que a garota havia dito. Se eu bem entendi o avô trabalhava ali, mas que tipo de avô é esse que traz a neta para ficar em um cemitério. Não consegui compreender achei que a garota tivesse falando bobeira, sabe como são as crianças misturam tudo dentro da cabecinha delas. Então perguntei para ter certeza se o avô trabalhava ali no cemitério.

- O seu avô trabalha aqui no cemitério?

- Sim. Olha ele ali.

Olhei para onde a garota apontava e vi o coveiro que retornou meu olhar com um aceno de mão. Acenei de volta por educação, só que por dentro estava com raiva, como um avô deixa uma criança ficar no cemitério o dia todo vendo enterros. E a única diversão é brincar com as crianças que aparecem por aqui.

- Você esta bravo, tio.

- Não. O tio não está bravo, por falar nisso qual é o seu nome?

- Ana Beatriz. Mas o vovô e todo mundo me chamam de Ana.

Ela virou de relance para o portal do cemitério e ficou olhando com cara de espanto, depois olhou pra mim e com um tom de seriedade que lembrava a um adulto falou.

- Tio o seu amigo chegou. Ele falou que sabe que você não gosta de estar aqui, por isso te pede desculpas e que está feliz por ter vindo dar um adeus a ele.

- Meu amigo... Como assim meu amigo.

- Agora eu vou brincar.

A garotinha levantou e saiu correndo entre os túmulos, me levantei para impedi-la de ir, porém avistei o caixão entrando pelo portal trazendo familiares e amigos com o cortejo. Era o meu amigo chegando para ser enterrado, perdi a garotinha de vista. Não sei explicar o desespero que me deu quando ela pronunciou aquelas palavras. Rapidamente as pessoas se aproximaram e fui cumprimentá-las oferecendo meus pêsames à família.

Durante todo o enterro não consegui parar de pensar no que a pequenina mocinha havia me dito, não achava direito ela viver neste local, provavelmente foi por isso que disse aquela frase estranha. Como se o cadáver do meu amigo pudesse se comunicar com ela. Não, definitivamente aquilo não estava correto. Terminei de me despedir do meu amigo e assim que o enterro acabou fui à procura do coveiro.

Encontrei o velho coveiro agachado sobre um tumulo ajeitando as flores, ele olhava para a lápide com os olhos marejados. Refuguei diante da imagem e pensei por duas vezes se devia mesmo tocar no assunto da neta. Decidi por falar, mas tentei não ser indelicado.

- Bom dia. O senhor que é o avô da Ana?

- Sim. Sou eu mesmo.

- Desculpa se estou sendo um pouco intransigente. Mas a pouco tive uma conversa estranha com sua neta e gostaria de conversar contigo.

- Meu jovem você e minha neta tiveram uma conversa?! Isso sim é estranho.

No momento não intendi a frase do velho coveiro, fiquei atônito olhando para ele, o senhor levantou e apontou para a lápide. E escrito nela estava, Ana Beatriz Souza Figueiredo. Não conseguia conceber e fiz a pergunta obvia.

- Sua neta está morta?

-Sim. Morreu há um ano, ela e meu filho estavam voltando de um passeio para casa. Foi demais para ele perder a filha, está internado até hoje a única coisa que diz é: - Tenho que levar a Ana para tomar sorvete.


Engoli seco a informação sem acreditar no que estava ouvindo, não consegui mais prosseguir com a conversa me virei e fui embora. Confesso que aquela não foi a ultima vez que eu veria Ana, mas isso é outra história.

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